13 de novembro de 2010

DESCOMPLICANDO 3 - "Perpetuatio" no Processo Civil

Uma coisa é inevitável: tudo muda, o tempo todo. Nós próprios já não somos os mesmos quando da última piscada ou do último suspiro, ainda que isso assuste aqueles que, cheios de jactância, temem a velhice.

Tudo está em constante mudança. Por quê? Porque, simplesmente, "tudo flui", como já concluía, séculos atrás, Heráclito.

Numa demanda jurisdicional, isso não é diferente. Desde o momento da propositura de uma ação, até a satisfação do direito declarado, muita coisa mudou. Não me refiro apenas aos desgastes físicos das partes, ou do juiz, ou de qualquer consequencia natural em razão da essência humana, que, em geral, não influem decisivamente no curso do processo (apesar de termos que confessar, por exemplo, que muitas vezes o réu usa do desgaste de seu adversário para forçar um acordo amigável...).

Quero referir-me aqui, especialmente, às mudanças nos elementos essenciais de uma demanda: as próprias partes, individualmente consideradas; o objeto do processo (pedido e causa de pedir); e a competência do juízo.

Mudanças em tais elementos não são assim tão raras de acontecer numa demanda, afinal, tudo flui... Mas por serem, como dito, elementos essenciais, tais mudanças acarretam, sim, consequencias importantes, e que por isso merecem ser consideradas.

Porém... (o leitor me perdõe por usar tantas conjunções adversativas, mas elas se fazem necessárias, pois apesar de, em certos parágrafos, as conclusões parecerem certas, tudo muda, tudo flui...)

O processo é algo que não pode durar para sempre. Ele começa, e tem de terminar uma hora. E não a qualquer hora, mas numa tal que permita o direito ser satisfeito, ser efetivado, em respeito ao princípio constitucional do acesso à ordem jurídica justa!

Por isso, o processo tem que ter mecanismos para ficar, de alguma forma, imune às mudanças, ou pelo menos aos efeitos que logicamente decorreriam destas. Em outras palavras, o processo precisa, em certo momento, se estabilizar.

Destarte, os elementos essenciais (aqueles já referidos acima) se petrificam, de modo que eventuais mudanças sobre os mesmos no decorrer da demanda não venham a afetá-la, atravacando-a infinitamente... A esse fenômeno dá-se o nome de perpetuatio.

Existem 03 (três) espécies de perpetuatio, a depender do elemento perpetuado. São elas:

a) perpetuatio jurisdictionis - perpetuação da competência;

b) perpetuatio legitimationis - perpetuação das partes;

c) perpetuatio libelli - perpetuação do objeto.

O intuito deste post não é dissecar exaustivamente cada uma das espécies acima apresentadas, até porque elas são melhor estudadas quando do tratamento de cada um dos elementos. Mas, valem-nos algumas breves considerações.

PERPETUATIO JURISDICTIONIS

Vem prevista no art. 87 do CPC, que reza: "Determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia".

Uma vez proposta a ação perante o juízo competente, a competência deste se perpetua, se estabiliza. Modificações posteriores não farão com o que o juízo deixe de ser competente.

Ex.: Maria propõe ação de divórcio em face de seu marido Caio. Ela propõe a demanda em São Paulo, pois é a cidade em que reside, levando em consideração o foro privilegiado previsto no art. 100, I do CPC. Acontece que, durante o processo, Maria se muda para Belém. Apesar da capital paraense ser o novo lar de Maria, o juízo de São Paulo continua competente para julgar a ação proposta, porquanto sua competência tenha se perpetuado no momento da propositura da ação, sendo irrelevante a modificação fática posterior.

Importante fazermos a ressalva de que a regra comporta exceções. Uma delas está prevista no próprio art. 87, transcrito acima. Se a modificação importar em suprimento do órgão judiciário ou alterar os critérios de competência em razão da matéria ou da hierarquia, a competência mudará. Outra exceção à regra geral é a ocorrência de conexão ou continência das ações (CPC, art. 102).

PERPETUATIO LEGITIMATIONIS

Vem prevista no art. 264 do CPC, quando este reza que, feita a citação, devem as partes ser mantidas. O art. 42 do mesmo diploma legal corrobora com a certeza, ao dispor: "A alienação da coisa ou do direito litigioso, a título particular, por ato entre vivos, não altera a legitimidade das partes".

Imaginemos o exemplo: "A" e "B" discutem judicialmente a titularidade de determinado imóvel, em posse de "B". Acontece que, no curso do processo, "B" aliena a coisa para "C". O adquirente ("C"), por certo, passa a ter a legitimidade ad causam para figurar no processo, mas isso em tese não ocorrerá porque a legitimidade de "B" já havia se perpetuado, e ele deverá continuar no feito até o seu final [1].

Exceções à regra da perpetuatio legitimationis: CPC, art. 42, § 1º; art. 43; e art. 66.

PERPETUATIO LIBELLI

Vem prevista no art. 264, parágrafo único, in verbis: "A alteração do pedido ou da causa de pedir em nenhuma hipótese será permitida após o saneamento do processo".

A questão da modificação objetiva da demanda pode ser esquematizada da seguinte forma:

- Até a citação do réu, o autor pode fazer as mudanças que entender necessárias, correndo às suas contas as custas de tal modificação (v. art. 294 do CPC);

- Após a citação do réu, as modificações só são cabíveis com o consentimento deste (CPC, art. 264, caput)

OBS.: Se o réu for revel, a alteração não será possível, a não ser que seja procedida nova citação (art. 321) [2].

- Após o saneamento do processo, incabível qualquer alteração, mesmo que o réu consinta, porque ocorrera a perpetuatio libelli.

_____

[1] O que "C" poderá fazer? Não é o objeto desta postagem, mas para quem ficou curioso, ler os parágrafos do art. 42 do CPC.

[2] Certa vez, travei discussão interessante com um amigo sobre a seguinte questão: Se o autor resolver alterar um dos elementos objetivos da demanda quando o réu for revel, e este, feita a nova citação, decidir se manifestar, qual será o limite de tal manifestação? Poderá fazer referência a todos os fatos (sobre os quais recaíram os efeitos da revelia), ou apenas àqueles modificados pelo autor? A questão é interessante, e prometo fazer, em breve, uma postagem expondo minha opinião.

_____

Bem, estas são algumas considerações que entendo pertinentes. Lembrando que o propósito não foi exaurir o tema. Trata-se de assuntos profundos e complexos, e que por isso merecem um estudo mais detalhado. O intuito dessa postagem foi apenas estruturar de forma didática o fenômeno da perpetuatio, que, por incrível que pareça, muita gente desconhece.

Bons estudos para todos, e estou à disposição para discussões sobre a questão!

4 comentários:

Triele disse...

Olá Rafael
Se teu objetivo era esclarecer de forma didática este tema, você conseguiu. Acredito que a abordagem foi ótima e bem esclarecedora.
Realmente as demandas precisam encontrar, teoricamente, uma estabilidade. Imagina o que seria se estivessem totalmente envolvidas pelas alterações externas provocadas pelo autor ou pelo réu, não é?
A leitura provoca também um interesse em buscar aprofundamento no assunto. Parabéns mais uma vez.

Anônimo disse...

Exemplo prático das exceções da perpetuatio jurisdictionis

Brenda disse...

Bem esclarecedor. Mas me vêm uma dúvida. No caso do exemplo citado do divórcio em que a requerente muda para Belém... Se caso o requerido também mudasse, por exemplo, ele tenha conseguido um emprego e Belém seja seu novo domicílio, assim como o da requerente.. Poderia se falar na Mitigação da perpetuatio jurisdictiones? Seria um fator determinante para que se remetesse lá autos? Agradeço... E parabéns pelo post

gisele leite disse...

Parabéns, colega. Sou professora universitária de Direito Processual e sou admiradora de sua didática e exposições.
Abraços cariocas